ACEITAR OU NÃO AS “ESCAPADINHAS” EXTRACONJUGAIS?
Aumento de casos extraconjugais lança luz sobre uma antiga polêmica
Traição. Palavra capaz de arrepiar as mulheres mais seguras e os homens mais autoconfiantes. Não à toa! Quando se fala em relação estável, impossível não pensar em uma vida planejada a dois. Um relacionamento verdadeiro envolve dividir sonhos, esperanças, projetos, lutas, derrotas e conquistas com a pessoa amada. Depende de entrega, dedicação e de lealdade entre os parceiros. Terceiros não são bem-vindos, assim como mentiras e omissões.
E é aí que as coisas começam a se complicar. Sim, porque se fidelidade e lealdade parecem sinônimos para muita gente, para outros são palavras apenas complementares, mas com significados distintos e que podem ou não estar associadas.
De fato, o conceito das palavras é um tanto diferente. “De maneira geral, enquanto o vocábulo fiel prioriza o aspecto da firmeza da relação com algo, o termo leal prioriza as qualidades morais da pessoa. Ser fiel diz mais respeito ao modo de agir, enquanto ser leal diz mais respeito ao modo de ser”, teoriza o professor de Língua Portuguesa Odilon Soares Leme.
Trocando em miúdos, fidelidade denota uma atitude de momento, que pode perdurar por um período indeterminado, enquanto lealdade tem conotação de ação de longo prazo, que dura por uma vida toda.
É certo que fidelidade tem muito mais apelo na nossa cultura, inclusive pela conotação sexual da expressão. "Se buscarmos lá atrás, em tempos mais remotos, vemos que fidelidade tem a ver com a virgindade das mulheres. Era a garantia que o homem tinha de que os filhos seriam realmente seus legítimos herdeiros", conta o psicólogo e professor da PUC-SP Antonio Carlos Amador, autor do livro “Ou Eu, ou Ela” (Editora Harbra).
não era, digamos, de praxe em algumas sociedades. Os casais de Esparta, na Grécia, não davam a mínima para o adultério. Pelo contrário: ele era praticado sem pudores para combater o ciúme excessivo.
Só que os tempos mudaram. Falar, hoje, em traição é quase como provocar uma centelha num terreno altamente inflamável e explosivo. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, a fidelidade é mais valorizada pelos brasileiros do que uma vida sexual satisfatória. Os dados indicam que 53% acham a traição carnal o fator mais prejudicial do casamento e apenas 1% aponta a vida sexual insatisfatória como um problema. Traduzindo: homens e mulheres preferem ser infeliz sexualmente a serem traídos pelo parceiro.
"A infidelidade é percebida como sintoma de uma insuficiência da relação amorosa. Para muitos, sem a fidelidade a relação não sobreviveria, pois acreditam ou precisam acreditar que são únicos para o parceiro", afirma a antropóloga Mirian Goldenberg, que há 20 anos estuda a fidelidade no Brasil.
É o típico retrato da sociedade pós-moderna, onde a traição sexual acaba por ter mais peso do que a traição moral. Sim, é tão possível quanto necessário dissociá-las para entender a diferença. Ninguém gosta de ser traído, obviamente, mas será que ser fiel sexualmente, mas tentar sabotar o parceiro de alguma outra forma não é também um tipo cruel de traição?
"Todos os relacionamentos existem com base em pactos de confiança", ressalta a psicóloga Maria Bruns. Segundo ela, o casal deve estabelecer quais são as regras do jogo. "Isso porque, afinal, o que é infidelidade? Trocar olhares, paquerar platonicamente, marcar um encontro, trocar beijos?", pergunta. E elucida: "Depende do casal e do compromisso que cada um tem com o parceiro."
FAÇA O QUE DIGO, NÃO FAÇA O QUE FAÇO
A questão é que ao mesmo tempo em que apregoam a fidelidade sexual acima de tudo, homens e mulheres não demonstram o mesmo entusiasmo pela monogamia quando a luz se volta contra eles. A discrepância entre o que se diz e o que se faz é de tirar o sono de seus pares. Segundo pesquisas, sob anonimato 70,6% dos homens confessam ter traído a parceira, enquanto 56,4% das mulheres assumem ao menos uma “escapadinha”. Apenas 36,3% dos brasileiros garantem nunca terem pulado a cerca.
O alto número de casos extraconjugais reacende uma antiga polêmica: é possível ser leal sem ser fiel? Para o palestrante de educação sexual Roberto Luiz Warcken, fidelidade e lealdade estão diretamente relacionadas com as imposições sociais. “Temos 2000 anos de dominação determinando o que é certo ou errado”, avalia.
De acordo com a tese de Warcken, os números do estudo acima são mais uma prova de que não se deve misturar sexo com afeto. “Antes de qualquer julgamento de valor, é importante levar em consideração que a poligamia é própria do ser humano e a monogamia é uma criação humana. Ninguém é propriedade de ninguém. Mas a razão do meu afeto pode ser tanta que permite este tipo de arranjo. Não sou obrigado a fazer sexo com quem eu amo, não sou obrigado a amar (a pessoa) com quem faço sexo, mas, se isso acontecer, ótimo”, pensa.
Seguindo esta linha de raciocínio, sim, é plausível ser infiel e ao mesmo tempo leal. Isso porque, segundo quem defende esta teoria, os casos passageiros têm apenas conotação sexual, o que não caracteriza a quebra do vínculo emocional. Envolver-se afetivamente sem romper com o relacionamento antigo, aí, sim, seria deslealdade, porque mais do que parceiros sexuais, quando se vive junto os cônjuges são cúmplices.
Longe de decantar a prática de quem trai e de exaltar a honestidade de quem se mantém fiel, fica uma pergunta: seria a tal “natureza poligâmica” do homem suficiente para justificar as famosas “escapadinhas”? Ao menos na visão masculina, sim. É essa a base das respostas obtidas por Mirian Goldenberg em suas pesquisas. “Os homens se defendem alegando uma natureza propensa à infidelidade. Eles dizem trair por instinto, vocação, atração física, tesão, disponibilidade”, enumera. Já para as mulheres, a traição é uma espécie de arma de vingança. “A principal justificativa feminina para pular a cerca é o revide, a falta de interesse do parceiro nelas e a baixa autoestima.”
Há ainda um problema recorrente que auxilia no entendimento de números tão altos de adultérios por aqui: falta conversa! Um levantamento sobre traição feito na América Latina mostra que há ausência de diálogo entre os casais, sobretudo no que diz respeito às preferências sexuais. Segundo o estudo, menos da metade das pessoas dizem falar sempre com o parceiro sobre o que mais gostam na cama. Metade (49,8%) diz que só às vezes fala sobre o assunto e 6,4% afirmam que isso nunca acontece.
Mas por que algumas pessoas traem e outras não? Estudos realizados no Canadá procuram entender este fenômeno. Uma série de pesquisas pouco comuns, liderada por John Lydon, psicólogo da McGill University, em Montreal, observou como as pessoas em um relacionamento sério reagem diante de uma tentação. Em um dos estudos, homens e mulheres casados altamente compromissados foram solicitados a classificar a atratividade de pessoas do sexo oposto em uma série de fotos. Não foi surpresa descobrir que eles deram notas mais altas a pessoas que normalmente seriam vistas como atraentes.
Mais tarde, os pesquisadores mostraram imagens similares e disseram aos participantes que a pessoa da foto estava interessada em conhecê-los. Naquela situação, os participantes deram a essas fotos notas mais baixas que da primeira vez. Quando eles se sentiam atraídos por alguém que poderia ameaçar o relacionamento, eles pareciam, de forma instintiva, dizer a si mesmos algo como “ele não é tão lindo assim”.
“Quanto mais comprometido você está, menos atraente você vai achar outras pessoas que ameacem seu relacionamento”, avaliou Lydon.
Porém, alguns aspectos da pesquisa mostraram diferenças de gênero em como nós respondemos a uma ameaça de traição. Em um estudo com 300 homens e mulheres heterossexuais, metade dos participantes foi preparada para a traição ao imaginar um flerte com alguém que eles consideram atraente. A outra metade imaginou apenas uma conversa normal.
Depois, os participantes foram solicitados a completar charadas de preencher com a letra que falta, como LO-AL e THR-AT. Sem o conhecimento dos pesquisados, os fragmentos de palavras eram um teste psicológico para revelar sentimentos subconscientes sobre o comprometimento (charadas similares são usadas para estudar sentimentos subconscientes sobre preconceito e estereótipo).
Nenhum padrão surgiu entre os participantes que imaginaram um encontro rotineiro. Mas houve diferenças entre homens e mulheres que tinham imaginado uma paquera. Nesse grupo, os homens tiveram maior tendência a completar a charada com as palavras neutras LOCAL e THROAT (garganta, em inglês). Mas as mulheres que tinham imaginado o flerte tiveram probabilidade muito maior de escolher LOYAL (fiel) e THREAT (ameaça), sugerindo que o exercício tinha deflagrado preocupações subconscientes sobre o comprometimento.
É claro, isso não necessariamente prevê um comportamento no mundo real. No entanto, a diferença pronunciada nas respostas levou os pesquisadores a pensar que as mulheres podem ter desenvolvido um tipo de sistema precoce de alerta para avisá-las quando o relacionamento está ameaçado.
DÁ PRA EVITAR?
A questão que fica para os cientistas é se uma pessoa pode ser treinada para resistir à tentação. Em novo estudo, a equipe pediu a estudantes do sexo masculino comprometidos com suas namoradas que imaginassem encontrar uma mulher atraente num fim de semana em que sua namorada estivesse viajando. Alguns dos homens foram solicitados a desenvolver um plano de contingência ao completar a frase: “Quando ela se aproximar, eu vou… para proteger meu relacionamento”.
Pelo fato de que os pesquisadores não podiam trazer uma mulher de verdade para agir como a tentação, eles criaram um jogo de realidade virtual no qual dois de quatro ambientes incluíam imagens subliminares de uma mulher atraente. Os homens que tinham praticado a resistência à tentação giraram ao redor desses ambientes 25% das vezes. Para os outros, o número ficou em 62%.
Para provar que há realmente “algo a mais” que define uma traição ou não, cientistas especulam que o nível de fidelidade pode depender do quanto um parceiro melhora sua vida e amplia seus horizontes – um conceito que Arthur Aron, psicólogo e pesquisador de relacionamentos da Stony Brook University, chama de “autoexpansão”.
Para avaliar esta qualidade, foi feita uma série de perguntas a casais: Em que grau seu parceiro oferece uma fonte de experiências empolgantes? Em que grau conhecer seu parceiro tornou você uma pessoa melhor? Em que grau você enxerga seu parceiro como uma forma de expandir suas próprias capacidades?
Os pesquisadores da Stony Brook conduziram experimentos usando atividades que simulavam a autoexpansão. Alguns casais receberam tarefas simples, enquanto outros participaram de um exercício em que foram amarrados uns aos outros e solicitados a se mover em colchões, empurrando um cilindro de espuma com a cabeça. O estudo foi armado para que os casais estourassem o tempo-limite nas primeiras duas tentativas, mas que conseguissem por pouco na terceira investida, resultando em muita comemoração.
Os casais receberam testes de relacionamento antes e depois do experimento. Os que tinham participado da atividade desafiadora reportaram aumento maior na satisfação com o amor e o relacionamento do que os que não experimentaram nenhuma vitória juntos.
Agora, os pesquisadores estão embarcando numa série de avaliações para medir como a autoexpansão influencia um relacionamento. Eles acreditam que um casal que explora novos lugares e experimenta coisas novas aumenta seu nível de comprometimento e, como consequência, de fidelidade.
“O que as pessoas muitas vezes têm dificuldade de ver é que, em primeiro lugar, a traição está ligada a uma disfunção da relação, em que cada um dos cônjuges têm uma parcela igual de responsabilidade”, aponta a terapeuta Mônica Lobo.
Especialista em sexualidade do Hospital das Clínicas, Alexandre Sadeeh concorda com a colega: “A paixão, o encantamento, o amor do início do casamento são destruídos pela rotina. As pessoas pensam, 'já conheço, já sei, não preciso me dedicar tanto'. Vão se distanciando sem perceber, e é isso o que leva à infidelidade”, completa.
Aceitar ou não as “escapadinhas” extraconjugais vai do acordo que existe entre as partes, mas fazer disso uma vida paralela, deixando o parceiro em “stand-by” involuntário, isso, sim, é traição. Fato é que ninguém está livre de se apaixonar por outro. Acima de tudo, o que mais importa é agir com verdade e respeito dentro de um relacionamento, e entender que a lealdade, às vezes, também está em admitir que a relação não dá mais certo e partir para outra sem machucar o companheiro.
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