FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
Scientia Sexualis
Neste capítulo, Foucault analisa o que ele denomina de scientia sexualis, ou uma ciência do sexo, uma ciência que pretendia iluminar esse aspecto do ser humano. A partir dos séculos XVI e XVII vemos na sociedade ocidental uma multiplicação de discursos sobre o sexo que, ao esquadrinhá-lo, definí-lo, acabaram por ocultá-lo, segundo o autor. Isso vai contra o senso comum que prega que, até o século XIX, o sexo era reprimido, ocultado, negado. Foucault diz claramente que existiu um projeto de iluminação de todos os aspectos do sexo, do seu esquadrinhamento. Cria-se neste momento um aparelho que, ao multiplicar os discursos sobre o sexo, visa produzir verdades sobre ele. No século XIX, momento crítico, esse projeto alia-se a um projeto científico, fatalmente comprometido com o evolucionismo e com os racismos oficiais. O discurso médico, sob uma aura de neutralidade científica, produz crescentemente verdades sobre o sexo, mas que estava ligado a uma moral da assepsia e da conexão entre o "patológico" e o "pecaminoso". A medicina do sexo se associa fortemente à biologia (evolucionista) da reprodução. Essa associação do discurso sobre o sexo com o discurso científico deu a ele maior legitimidade.
Foucault opõe dois conceitos, o de ars erotica e o da scientia sexualis.
Ars erotica, própria de civilizações como Roma, Índia, China, etc., buscavam no saber sobre o prazer formas de ampliá-lo, era um saber de dentro, onde a verdade sobre o prazer é extraída do próprio saber.
No ocidente configurou-se a scientia sexualis, onde a confissão é central na produção de saberes sobre o sexo. Os ocidentais são levados a confessar tudo, expor seus prazeres, uma obrigação já internalizada. A confissão estabelece uma relação de poder onde aquele que confessa se expõe, produz um discurso sobre si, enquanto aquele que ouve interpreta o discurso, redime, condena, domina.
No século XIX o procedimento da confissão extrapola a penitência, extrapola o domínio religioso. Há uma sobrecarga de discursos, e a interferência de duas modalidades de produção da verdade: os procedimentos da confissão e a discursividade científica.
Foucault enumera as maneiras, as estratégias usadas para extorquir a verdade sexual de maneira científica:
1- codificação clínica do fazer falar: a confissão é assim inscrita no campo de observações científicas;
2- postulado da causalidade geral e difusa: qualquer desvio possui consequências mortais, o sexo representa perigos ilimitados;
3- princípio da latência intrínseca da sexualidade: o sexo é clandestino, sua essência é obscura. A coerção da confissão é articulada à prática científica;
4- interpretação: a verdade era produzida através dos discursos interpretativos da confissão;
5- medicalização: confissão é transposta no campo do normal e patológico. Os médicos são por excelência os intérpretes da verdade sobre o sexo.
Em ruptura com as tradições da ars erotica, nossa sociedade constituiu uma scientia sexualis. Mais precisamente, atribuiu-se a tarefa de produzir discursos verdadeiros sobre o sexo, e isto tentando ajustar, não sem dificuldade, o antigo procedimento da confissão às regras do discurso científico. (FOUCAULT, 1993:66)
Desde o século XVI, esse rito fora, pouco a pouco, desvinculado do sacramento da penitência e, por intermédio da condução das almas e da direção espiritual - ars artium - emigrou para a pedagogia, para as relações entre adultos e crianças, para as relações familiares, a medicina e a psiquiatria. (FOUCAULT, 1993:67)
Em todo caso, a hipótese de um poder de repressão que nossa sociedade exerceria sobre o sexo e por motivos econômicos, revela-se insuficiente se for preciso considerar toda uma série de reforços e de intensificações que uma primeira abordagem manifesta: proliferação de discursos, e discursos cuidadosamente inscritos em exigências de poder; solidificação do despropósito sexual e constituição de dispositivos suscetíveis, não somente de isolá-lo, mas de solicitá-lo, suscitá-lo, constituí-lo em foco de atenção, de discursos e de prazeres; produção forçosa de confissão e, a partir dela, instauração de um sistema de saber legítimo e de uma economia de prazeres múltiplos. Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição, trata-se da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos, saberes, prazeres e poderes; não se trata de um movimento obstinado em afastar o sexo selvagem para alguma região obscura e inacessível mas, pelo contrário, de processos que o disseminam na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam-no, fazem-no falar, implantam-no no real e lhe ordenam dizer a verdade: todo um cintilar visível do sexual refletido na multiplicidade dos discursos, na obstinação dos poderes e na conjugação do saber com o prazer. (FOUCAULT, 1993:70-71)
A história da sexualidade, para o autor, deve ser feita a partir de uma história dos discursos.
O Dispositivo da Sexualidade
Foucault expõe, neste capítulo, a sua concepção de poder, difuso no social e presente em todos os pontos, e faz a relação disso com o discurso e a sexualidade.
O autor recusa imediatamente a imagem do poder como meramente opressor, negador do sexo, este uma força selvagem, a ser domesticada. Ele quer compreender como o poder e o desejo se articulam Essa imagem do poder como repressor da liberdade permite-nos, segundo o autor, aceitar a sua vigência, pois o alcance do poder é muito maior. O discurso jurídico e as leis não mais simbolizam o poder de maneira mais ampla; este extrapolou seus limites a partir do século XVIII, criando novas tecnologias de dominação. Nós somos controlados e normatizados por múltiplos processos de poder. Essa visão do poder também é vital para uma história da sexualidade.
"Dizendo poder, não quero significar 'o poder', como um conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos em um estado determinado. Também não entendo poder como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma de regra. Enfim, não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas e, antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais." (FOUCAULT, 1993:88-89).
O poder, para Foucault, provém de todas as partes, em cada relação entre um ponto e outro. Essas relações são dinâmicas, móveis, e mantêm ou destróem grandes esquemas de dominação. Essas correlações de poder são relacionais, segundo o autor; se relacionam sempre com inúmeros pontos de resistência que são ao mesmo tempo alvo e apoio, "saliência que permite a preensão" (FOUCAULT, 1993:91). As resistências, dessa forma, devem ser vistas sempre no plural.
Para uma metodologia de análise, Foucault sugere quatro "prescrições de prudência":
1- regra de imanência: a produção de saberes se relaciona com relações de poder; focos de saber-poder;
2- regra das variações contínuas: as relações de poder não são estáticas, não há dualidade opressor/oprimido;
3- regra do duplo condicionamento: os focos locais de poder são condicionados por estratégias globais e vice-versa, ambos apoiando-se mutuamente um no outro;
4- regra da polivalência tática dos discursos: o discurso não reflete a realidade, o poder e o saber se articulam no discurso. Não há discurso excluído e o dominante, mas uma multiplicidade de discursos, que se inserem em estratégias diversas. O discurso veicula e produz poder. Por exemplo: o discurso instituiu a homossexualidade como pecado, classificou-a como patologia, mas também possibilitou-a de falar por si, de reivindicar espaços e discursos próprios.
Foucault fala de quatro estratégias globais de dominação, constituintes do dispositivo da sexualidade: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do corpo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer "perverso". Essa nova tecnologia sexual surge no século XVIII, criando uma relação entre degenerescência, hereditariedade e perversão.
O dispositivo da sexualidade, que instituiu o sexo como verdade maior sobre o indivíduo, transpôs o controle para a carne, os corpos, os prazeres. O autor contrapõe isso ao dispositivo da aliança, que definia o proibido/permitido através da relação. O dispositivo da sexualidade vê sua ascensão no seio da burguesia, é ligado à ascensão desta. As classes populares submetidas antes somente ao dispositivo da aliança, se viram submetidas também ao dispositivo da sexualidade com a hegemonia burguesa.
B) MORT, Frank. "Crisis Points: Masculinities in History and Social Theory". in Gender and History, 6 (1), April 1994, pp. 124-130.
Frank Mort faz uma pequena discussão sobre o estudo da masculinidade resenhando três livros especificamente sobre o assunto: Men, Masculinities and Social Theory, organizado por Jeff Hearn e David Morgan; Discovering Men, também de David Morgan; e Manful Assertions: Masculinities in Britain Since 1800, de Michael Roper e John Tosh.
O autor cita Bourdieu, referindo-se à noção de 'crisis points', ou 'crisis moments' onde existe competição entre diferentes sistemas de classificação. A recente erupção de discursos sobre a(s) masculinidade(s) pode ser entendida assim. Surgida após a avalanche feminista da década de 70, esses discursos se concentram no mundo anglo-saxão e promovem mudanças a nível de conceitos das ciências sociais, assim como questionam o poder, o status quo social e a redefinição do 'eu' masculino. Com a chamada 'crise da masculinidade', preceitos básicos da cultura intelectual são questionados, assim como do poder masculino e da sexualidade.
A ênfase dada por esses trabalhos ao uso de masculinidades no plural se configura num questionamento do essencialismo, reiterando a idéia de construção social da masculinidade. Essa postura metodológica, que surgiu da discussão feminista do gênero como categoria analítica, agora é usada para estudar a construção de modelos de masculinidade na história.
O autor lembra que a idéia de crise da masculinidade não é global, restringe-se a grupos pequenos, intelectualizados de homens que, a partir da crítica feminista, se voltam para uma auto-crítica. Relações de poder homem/mulher e homem/homem são uma questão central nas análises.
Mort diz que há autores que defendem teorias do patriarcado como válidas para analisar a questão da masculinidade e da hegemonia masculina na sociedade. Ele delimita a sua posição, que se encontra em graus diferentes nos trabalhos, defendendo a chamada metodologia pós-estruturalista, valorizando uma teoria do discurso (autores como Foucault) e a produção sócio-histórica do gênero (Joan Scott).
C) WALTERS, Jonathan. "'No More than a Boy': The Shifting Construction of Masculinity From Ancient Greece to the Middle Ages". in Gender and History, 5 (1), Spring 1993, pp. 20-33.
Walters tem como objetivo maior nesse artigo comparar as concepções de masculinidade de duas sociedades diferentes, a da civilização greco-romana clássica e a da Itália do Norte no século XIV. Ele pretende elucidar algumas questões sobre as concepções de gênero da Antiguidade, pois sempre houve uma errônea identificação entre as nossas concepções e as deles, erro esse que acaba por ocultar a diferença dos greco-romanos. Esse contraste também nos ajudaria a perceber melhor a compreensão social e a demarcação da categoria "homem" na nossa própria sociedade. Ele analisa no artigo uma mesma história, contada ora por Apuleius, um autor latino do século II da era cristã, ora por Bocaccio, autor italiano do século XIV.
Walters não quer teorizar muito, pois reconhece que a literatura não reflete a cultura. Ele declara que quer adicionar evidências às já existentes sobre o tema, demonstrar o uso de certos tipos de evidência e sugerir a utilidade da comparação entre diferentes noções de gênero. O seu objeto é a masculinidade como construção social. Ele quer manter um olhar antropológico, livrando-se de uma falsa identificação com a nossa própria sociedade. Seu foco não é a atividade sexual (que se torna, no entanto, central no seu argumento), mas sim o lugar da masculinidade em sociedades "do outro" e a relação entre gênero e poder. Como pressuposto, ele não distingue as civilizações grega e romana, utilizando no lugar a idéia de sociedade mediterrânea.
O enredo da história contada pelos dois autores é bastante simples: o marido sai de casa, deixando sozinha sua mulher; esta traz para a cama um amante, e ambos são flagrados no ato da traição; o marido, furioso, leva ele próprio o amante para a cama. A primeira versão, de Apuleius, é supostamente a original, ou foi inspiração para versões posteriores, e se encontra numa narrativa maior chamada As Metamorfoses. A versão de Bocaccio se encontra no Decamerão, (dia 5, história 10). O argumento de Walters é de que Bocaccio, no espírito da Renascença, foi buscar inspiração em autores clássicos como Apuleius. Mas ao recontar a mesma história, ele pôs algo de suas próprias noções de gênero no texto. Ou seja, comparando os dois textos, podemos perceber e comparar diferentes noções de gênero.
Na versão de Apuleius, o marido é descrito como bom, honrado, enquanto que sua mulher é depravada. No texto, a violação do amante pelo marido é punição justa pelo que ele fez, feriu a honra do marido. Na sociedade mediterrânea da época, meninos (o amante é um jovem) e mulheres são objetos sexuais passivos do homem, que deve ser ativo. O adultério justifica punições de estupro e mesmo de morte, sendo o estupro anal do homem forma de punição usada nos mais diferentes contextos. Na mitologia, a divindade Priapus é representada possuindo um falo enorme, e pune com estupro quem ousar violar seus jardins.
No texto de Bocaccio, o marido é descrito como efeminado, um homem que nunca gostou de mulheres e casou-se por obrigação. Sua mulher é lasciva, supersexuada, e é levada a outros homens pelo desinteresse do marido. Este também se interessava pelo amante. O desejo do marido é portanto homossexual, ele é descrito como alguém efeminado, "invertido". Walters faz a conexão com o contexto no qual escrevia Bocaccio: a igreja havia instituído a sodomia como crime contra a natureza. Mas ao mesmo tempo, poderia já haver nas cidades do Norte da Itália uma subcultura "sodomita".
As diferenças são gritantes, e vemos aqui como houve uma mudança no decorrer dos séculos sobre o que significava ser homem. No texto de Apuleius, o marido estupra o menino adúltero para reafirmar seu papel viril e masculino frente ao rapaz passivo. Bocaccio já retrata o marido como anormal devido à sua sexualidade.
Houve, no século XIV na Itália um pânico a respeito da sodomia, com uma explosão de denúncias da prática, uma crescente repressão e a instituição da noção da sodomia como um dos grandes pecados contra a natureza. A descrição do "sodomita" encontrada nos documentos se parece muito com a descrição do marido feita por Bocaccio. Já na sociedade de Apuleius, as noções são outras. A hierarquia se constrói ao redor e abaixo do homem adulto. Há o homem livre, adulto, dominante sexualmente, socialmente e politicamente. Subordinados a ele estão as mulheres e os meninos, homens "incompletos", passivos tanto social como sexualmente. Os meninos pré-pubescentes eram objeto de desejo sexual aceitável para homens, e há inúmeros poemas de paixões de tipo. O menino adquiria sua masculinidade completa depois da puberdade, quando cresciam pelos nos corpo. As dualidades homem/jovem, ativo/passivo, masculino/efeminado são vitais na compreensão.
Na sociedade greco-romana, o mestre era ativo e o escravo era passivo. Como em todas as sociedades, as hierarquias sexuais e as noções de gênero se relacionam intimamente com as hierarquias de poder na sociedade.
FONTE:http://www.artnet.com.br/~marko/resenhafoucault.htm
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ResponderExcluirAcho fascinante como Foucault aborda esse tema tão complexo que é sexualidade e poder, vale a pena perceber o conjunto de contradições sociais quando o assunto perpassa pelo ambito sexual e toda forma disfarçada que temos de controle da sexualidade. O dificil e fazer a correlação entre o que é liberdade ou escravidão moral, pois,o comportamento represivo que o autor cita atinge ao meu ver todos em maior ou menor escala.
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