MUTAÇÕES DA SEXUALIDADE FEMININA



Sanz (2007), em sua extensa pesquisa sobre os escritos de Bachofen, afirma que ele foi o grande iniciador dos estudos sobre as origens do matriarcado, da “cultura ginecocrática” na antiguidade. Pensador e investigador do século XIX, docente colega de Nietzsche, Bachofen distinguiu três momentos importantes na constituição do período matriarcal no passado grego e sua passagem para o patriarcado:

- Primeiro estágio: Dominado pela deusa Afrodite, a vida se encontrava então em plena de símbolos do feminino e da natureza. O direito natural que prevalece aqui é o da fecundidade. Da terra, sua capacidade criadora. A terra é a grande mãe.
- Segundo estágio: Predomina o culto à deusa Deméter, na qual o feminino aceita a mediação do matrimônio num plano social e na agricultura como uma forma essencial, contudo, em unidade com a natureza.
- Terceiro estágio: Triunfo de Apolo, o deus-sol. Aqui inicia-se o predomínio masculino e o desprezo ao feminino, produzindo-se, assim, a passagem do sistema matriarcal para o patriarcal. A sociedade patriarcal privilegia o racional, a individualidade, a guerra, a autoridade, a dominação.
Segundo a autora, Bachofen “converte” sua investigação em uma antropologia histórica das representações simbólicas que configuram a memória coletiva de um povo e, em ultima instância, sua identidade.
Seguindo a linha dos antropólogos evolucionistas, Morgan defendeu, ao estudar as tribos dos Iroqueses, a visão de que as relações de parentesco eram matrilineares. Afirmou também que, na sucessão para a filiação patrilinear, depois do aparecimento da propriedade, o parentesco passou a ser constituído por um homem, considerado o antepassado comum, pelos seus filhos, pelos filhos dos seus descendentes masculinos e assim sucessivamente. (Morgan, 1976)
Na opinião de Götner-Abendroth (2007), o trabalho de Bachofen situa-se no campo da história das culturas e encontra-se em paralelo perfeito com o trabalho de Morgan no campo da antropologia/etnologia. Mas a crítica avaliou muito diferentemente o trabalho desses estudiosos: Morgan foi considerado o pai da etonologia/antropologia; já a Bachofen, não foi-lhe dada a devida importância.
Segundo a autora a razão é simples: “se fosse feito um exame minucioso de seu trabalho, isso causaria o começo da ruína da visão patriarcal, da ideologia e do mundo. Marca o início do desenvolvimento de um novo paradigma da história humana: por isso é tão “perigoso” estudá-lo adequadamente”.
Götner-Abendroth (2007) afirma que, por mais importante que tenham sido – e o foram realmente – os primeiros textos sobre o matriarcado, foram escritos por homens que viviam e estavam completamente inseridos em uma sociedade machista e patriarcal. O trabalho da autora, assim como de outros contemporâneos, procura revisar o conhecimento sobre a estrutura do matriarcado numa visão menos preconceituosa.
Para Bachofen, as sociedades humanas, em seus primórdios eram, seguramente, sociedades matriarcais. “As mulheres”, assegurou, “dominavam o mundo de então” (Existiu, 2007).
Götner-Abendroth (2007) discorda do termo “dominar”, ela reformula o próprio siginificado do termo matriarcado: “Nós não somos obrigadas a seguir a noção machista do termo matriarcado significando: dominação pelas mães”. A autora afirma que a palavra grega “arché” tem um duplo sentido, significa tanto “começo” quanto “dominação”. A definição mais precisa de matriarcado seria então: “as mães do princípio”, enquanto o patriarcado, por outro lado, seria traduzido corretamente como “domínio dos pais”. Segundo a autora, a redefinição do termo matriarcado tem relevância política, pois ele não evita discussão com colegas profissionais e com a audiência interessada.
Como a sociedade matriarcal era estruturada, social, cultural e economicamente? Götner-Abendroth (2007), em suas pesquisas, procura responder a essas questões:
- No nível econômico, são sociedades em sua maioria agrícolas. As tecnologias agrícolas desenvolvidas vão desde simples jardinagem (horta) à uma agricultura completa com arado (no começo do Neolítico) e, finalmente, aos sistemas de grandes irrigações das primeiras culturas urbanas as mais adiantadas. Os bens não são acumulados por uma pessoa ou por um grupo específico, a sociedade é igualitária e não-acumulativa. Cada vantagem ou desvantagem a respeito da aquisição dos bens é mediada por regras sociais. Por exemplo, nos festivais da cidade, os clãs mais ricos são obrigados convidar todos os habitantes. Organizam o banquete, no qual distribuem sua riqueza para ganhar a honra.
- No nível social, o parentesco é matrilinear, no qual todos os títulos sociais e políticos são transmitidos através da linhagem materna. Este tipo de matri-clã consiste pelo menos em três gerações das mulheres – a clã-mãe, suas filhas, seus netas – e os homens diretamente relacionados – os irmãos da mãe, de seus filhos e de netos. As mulheres vivem permanentemente e nunca saem da casa do clã de sua mãe, quando se casam. A isso se chama matrilocalidade. As mulheres têm o poder de controlar as fontes nutrição: campos e alimento. Os clãs são auto-suficientes e se relacionam com outros clãs através da união do casamento. Esse casamento não é uma união individual, mas uma união comunal que conduz ao matrimônio comunal. Por exemplo, os homens novos da casa do clã A são casados à casa do clã nova B das mulheres, e os homens novos da casa de clã B são casados às mulheres novas na casa de clã A. Isto é chamado uma união mútua entre dois clãs em uma aldeia matriarcal. Os homens jovens, que saíram das casa de suas mães após seu casamento, não têm que ir muito longe. Realmente, ao anoitecer vão à casa vizinha, onde suas esposas vivem, e voltam muito cedo – no alvorecer. Os homens matriarcais nunca consideram os filhos de sua esposa como seus, porque não compartilham de seu nome de clã. A paternidade biológica não é conhecida, nem a ela se dá atenção. Os homens matriarcais cuidam de seus sobrinhos e sobrinhas num tipo de paternidade social. Mesmo o processo de tomada de decisão política é organizado ao longo das linhas do parentesco matriarcal. Os delegados de cada casa de clã encontram-se com no conselho da aldeia, onde todos os assuntos são discutidos. Estes delegados podem ser as mulheres mais velhas dos clãs (as matriarcas), ou os irmãos e os filhos que escolheram para representar o clã. Nenhuma decisão a respeito da aldeia pode ser feita exame sem o consenso de todas as casas de clãs. Um fato importante: os delegados, que estão discutindo a matéria, não são aqueles que tomam a decisão, os delegados possuem a função simplesmente de porta-vozes.
Pessoas que vivem em uma determinada região tomam decisões na mesma maneira: os delegados de todas as vilas encontram-se com para trocar as decisões de suas comunidades. Em contraste aos erros etnológicos freqüentes feitos sobre estes homens, elas não são os “chefes” pois não depende deles a decisão. A decisão é tomada em nível regional, um consenso entre todas as casas de clãs. Conseqüentemente, do ponto de vista político, as sociedades matriarcais são sociedades igualitárias ou sociedades do consenso. Exatamente neste sentido, estariam livres de dominação, desprovidas de uma classe de dominadores e uma classe excluída, isto é, não possuem os aparelhos repressivos necessários para estabelecer a dominação.
- No nível cultural, é preciso esclarecer que não são sociedades caracterizadas por “cultos à fertilidade”, mas que desenvolveram complexos sistemas religiosos. O fator comum seria crença no renascimento, não como a idéia abstrata da transmigração de almas, mas em um sentido muito concreto: todos os membros de um clã sabem que, após a morte, vão renascer – por uma das mulheres de seu próprio clã, em sua própria casa de clã, em sua aldeia natal. As mulheres em sociedades matriarcais são grandemente respeitadas, porque elas garantem o renascimento. Assim como na natureza, cada planta, resseca no outono e renasce na próxima primavera, a terra é a grande mãe que concede o renascimento e a nutrição a todos os seres. No cosmos e na terra, os povos matriarcais observam este ciclo da vida, da morte e do renascimento. De acordo com o princípio matriarcal da conexão entre o macro-cosmo e o micro-cosmo, vêem o mesmo ciclo na vida humana. A existência humana não seria diferente dos ciclos da natureza, mas seguiria as mesmas regras. Da perspectiva matriarcal, a vida traria a morte e a morte traria a vida, cada coisa em seu próprio tempo. Da mesma maneira, a fêmea e o macho também seriam uma polaridade cósmica. Nunca ocorreria a um povo matriarcal considerar o outro sexo como mais fraco ou inferior ao outro, como é comum em sociedades patriarcais.
“O grande mérito destas obras, publicadas nas décadas de 1870 e 1880, foi a constatação de que a família tinha história e que, ao longo dos séculos, tinha conhecido várias formas. A família monogâmico-patriarcal era apenas uma delas. Conclusão: o poder masculino e a submissão da mulher não eram eternos, como diziam as religiões e as pseudociências racistas e sexistas da época” (Buonicori, 2007).
Segundo Buonicori (2007), Engels afirmaria que a monogamia teria sido fundada sob a dominação do homem com o fim expresso de procriar filhos duma paternidade incontestável, na qualidade de herdeiros diretos. Mas somente ao homem, garantido pelos costumes, é concedido o direito da infidelidade conjugal, já a mulher infiel é punida severamente pela sociedade.
Em outras palavras, podemos afirmar que, com a monogamia, instituiu-se a prostituição e o adultério. A mulher é condenada caso não aceite a condição monogâmica, enquanto o homem pode carregar uma “leve mancha moral” mas, ainda assim, é aceitável, até nos dias de hoje, principalmente pelas próprias mulheres, que o homem se relacione com prostitutas.
Pensamos agora na neurose coletiva, que tanto abordamos nos últimos artigos, ou nos indivíduos normopatas, como diz Gaiarsa, ou nos Zés ninguéns, como prefere Reich. Ao reprimir a sexualidade, ao criar esta idéia do “sexo frágil”, da “inferioridade feminina”, defendida durante séculos por estudiosos do comportamento humano e da sexualidade, ao negar o feminino proclamando um único Deus masculino, ao negar a sexualidade sadia de Cristo, ao tornar Maria um ser assexuado – ao fazer tudo isso, a quem estamos agredindo, a não ser a nós mesmos? O que tanto tememos? A liberdade? A felicidade?
Com o advento da sociedade patriarcal, com o casamento monogâmico, criamos o quê? Guerras, genocídios, a negação do prazer e da felicidade. Por isso considero importantíssimo um mergulho no passado, em nossos ancestrais mais longínquos: a sociedade matriarcal. É preciso entender o a estrutura, esse processo de transformação: da sociedade matriarcal para a patriarcal e todas as suas conseqüências.
Bibliografia:
Buonicori, Augusto C. Engels e as origens da opressão da mulher. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/070/70esp_buonicore.htm. Acessado em 10/08/2007.
Existiu o matriarcado? Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/matriarcado4.htm. Acessado em 10/08/2007.
Götner-Abendroth, Heide. Matriarchal society: definition and theory. Disponivel em: http://www.hagia.de/documents/position.pdf Acessado em: 01/07/2007
Morgan. Lewis H. A sociedade primitiva. Volume I, 2 ed, Editorial Presença Lisboa Portugal, Martins Fontes Brasil, 1976.
Sanz, Marta Silvia Dios. El matriarcado. Disponível em: http://www.temakel.com/texmitmatriarcado.htm. Acessado em 10/08/2007.

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